Nascer em tempos de coronavírus
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O que está por trás do fechamento da Maternidade Bairro Novo de Curitiba. E o que ninguém te contou.
Por Luciana Zenti
jornalista, fotógrafa e ativista do parto humanizado
Quando o único caminho encontrado pelo poder público para atender uma situação de pandemia é fechar uma maternidade - que é referência internacional em atendimento ao parto - isso quer dizer muita coisa.
Vivemos uma situação de emergência de saúde pública. O mundo todo está correndo contra o relógio pra dar conta de absorver os milhares de doentes do coronavírus. Curitiba não é uma ilha isolada nesse maremoto. Por aqui, as ondas já começam a assustar. Nas últimas semanas temos sido inundados pelo medo de que a sistema de saúde da cidade não seja capaz de dar conta do que está vindo por aí.
É um situação de tirar o chão. E ninguém ousaria dizer o contrário.
Mas, ainda que assustados, é preciso que nos mantenhamos de olhos bem abertos. Há muitas peças nesse quebra-cabeças. Principalmente se o que queremos – e, de fato, queremos – é lutar pela vida. Então eu te faço um convite e refletir sobre a vida que estamos a zelar. E mais ainda, sobre vidas que estão chegando neste exato momento, em um mundo devastado por uma pandemia.
Se tem uma coisa que aprendi nesses muitos anos de fotógrafa de parto é que quem trabalha na linha de frente do atendimento ao parto tem algo muito forte em comum: um incondicional amor pela vida. Sabemos. E esses profissionais mais ainda: todas as vidas importam. As dos doentes que estão em risco. Mas também as de mulheres que estão prestes a ver seus filhos nascerem e estão acuadas e com medo. Muito medo. O que me pergunto é: quem vai cuidar dessas mulheres que estão neste momento entregando ao mundo nossa próxima geração?
Ao redor do planeta, cada país tem buscado, cada qual a sua forma, uma solução para esta situação de calamidade na saúde. A China deixou o mundo de boca aberta ao construir em dias um hospital. Na Europa, atual epicentro da pandemia, o poder público tem investido na construção de hospitais de campanha. E aqui do lado, na nossa vizinha São Paulo, estádios de futebol estão sendo transformados em estruturas de saúde para atender aos pacientes que, sabemos, chegarão aos milhares. Há também governos que já estudam trabalhar em parceria com a rede privada de saúde, utilizando as estruturas de propriedade de planos de saúde, por exemplo. Tudo. Absolutamente tudo está sendo pensado como possibilidade de medida de contingência.
Em Curitiba, muito poderia ser feito. Muitos caminhos poderiam ser tomados. Muitas soluções poderiam ser adotadas para suprir a emergência do Coronavírus sem descobrir os pés das gestantes. Não tenho dúvidas que uma comissão formada por profissionais que estão na linha de frente do atendimento ao parto poderia, em conjunto, construir com a Prefeitura de Curitiba uma solução que conciliasse atender a esses dois públicos em risco. E se existe uma coisa que não falta em Curitiba é profissional competente de atendimento ao parto. Disso eu tenho certeza.
Eles poderiam trazer sua visão, mostrar as necessidades básicas a que as gestantes e as parturientes estão expostas neste momento. Apresentar as dificuldades. Pensar em maneiras de se minimizar os riscos. Propor soluções. Achar saídas. Poderiam trazer as experiência de outros países, inclusive no que se refere ao atendimento emergencial das gestantes em tempos de coronavírus. Um DreamTeam do atendimento ao parto. Será sonhar grande demais?
Na Inglaterra, o sistema público de saúde – que é referência mundial em atendimento ao parto – saiu-se com uma medida tão ousada quanto genial: transformou hotéis próximos de hospitais em casas de parto, onde as gestantes são atendidas em segurança por enfermeiras obstetras, as chamadas midwives. Sem contato com doentes, sem riscos de infecção hospitalar, sem filas na triagem de um hospital geral. E, no caso de uma emergência, o hospital está ali do lado da improvisada casa de parto.
Mas em Curitiba, fechar a maternidade era mais fácil.
A ironia é que essa mesma maternidade, no Bairro Novo, foi visitada há poucos anos por uma representante do sistema público de saúde da Inglaterra que queria conhecer como as gestantes eram atendidas em Curitiba. Lá fora eles estavam de olho na gente. Enquanto na cidade ninguém dava muita bola pra uma maternidade pequena, 100% SUS, que atendia mulheres de baixa renda da periferia. Lesley Page (a midwife conhecida mundialmente e que há poucos anos colocou seus pés ingleses no Bairro Novo) ficou impressionada ao ver o que os profissionais brasileiros eram capazes de fazer, mesmo com tão poucos recursos. O olhos dela brilharam. Foi bonito de ver.
Se eu pudesse fazer um só pedido neste instante é que a Lesley assoprasse alguns bons conselhos nos ouvidos dos nossos gestores de saúde. Que ela fizesse parte dessa comissão curitibana de defesa das gestantes e pudesse trazer sua experiência para construirmos novos caminhos.
Mas, de novo, fechar a maternidade era mais fácil. Mais rápido. Quase indolor. Some-se a isso o timing perfeito. Com a população em pânico, qualquer medida amarga é engolida. Nem dói pra descer. Porque, afinal, vidas estão em jogo. É preciso agir. A todo custo. Do jeito que for. E depois a gente vê o que sobra.
Mas não se engane. As pessoas não se transformam em anjos instantaneamente a partir do momento em que se instala o caos. Política continua sendo política. Governantes continuam sendo governantes. E, ainda que velados, os interesses continuam ali. A verdade é que os profissionais da Maternidade Bairro Novo lutam há muito tempo pela vida. Da própria maternidade. Os recursos são escassos. A reforma que nunca sai. Lembro de algumas vezes em que fui até a maternidade para fotografar. Eu sempre escrevia em um pedaço de esparadrapo a palavra “fotógrafa” para que eu não fosse confundida com alguma enfermeira ou médica. Mas tinha dias que faltava esparadrapo até para escrever com caneta essas quatro sílabas. E era assim. Faltava – e falta – bastante coisa.
Então você poderia perguntar agora: como seria possível uma maternidade com recursos tão escassos se tornar uma referência em atendimento de qualidade ao parto? A resposta está nas pessoas. Os profissionais que trabalham ali. Incansáveis na sua luta e no respeito pela mulher. Que acreditam que o parto humanizado no SUS é possível. Quando um profissional de saúde está imerso em uma realidade obstétrica que subjuga a mulher e, mesmo assim, consegue fazer de um limão uma limonada, eu só tenho uma coisa a dizer: eles venceram.
Ao longo de seis meses que mergulhei no dia a dia da maternidade como fotógrafa eu entendi que é preciso muita força, muita paixão, muita grandeza de caráter pra lutar dentro do SUS para que as mulheres sejam respeitadas no momento mais vulnerável da vida delas, que é o parto. É um leão por dia. É um passo pra frente, três pra trás. E o abraço de todo mundo junto pra não desistir. Muita lágrima que se derruba num canto do banheiro. É um trabalho de formiguinha, muitas formiguinhas, de mulheres que dedicam a vida a outras mulheres. Gestantes de baixa renda esquecidas pelos nossos governantes. Afinal, quem se importa com as mulheres? Diante desse cenário, fica muito fácil ter o respaldo de uma população assustada para subtrair direitos das mulheres tão duramente conquistados. Fica fácil fechar as portas.
O que está em jogo não é apenas uma contingência de saúde em tempos de coronavírus. O que realmente está em risco é o trabalho construído por anos nessa maternidade a passos pequeninos e que agora, numa canetada, pode simplesmente desaparecer. O que eu assisti nos últimos dias, com profunda tristeza, não foi um remanejamento de leitos hospitalares. Foi uma maternidade ser desmontada no que ela tinha de mais nobre: sua missão de cuidar de mulheres. Com muitas doses de dignidade e outras tantas de resiliência. Hoje, com o coração partido, fui até a maternidade e vi que as fotos dos partos que fotografei não estavam mais naquelas paredes. Lembrei então do dia em que pendurei os quadros. Um por um. O coração cheio de amor e de esperança pela construção de um mundo melhor para as mulheres. Eu desejei que cada mulher que passasse pela Maternidade do Bairro Novo pudesse parar alguns segundos na frente daquelas imagens, entendesse o que é parir com respeito e exigisse que o sistema público de saúde lhe entregasse o parto que todas as mulheres, de todas as classes sociais, merecem. Hoje as paredes estão tristemente vazias. O Centro Obstétrico também. Aquele silêncio que ecoa: um dia voltaremos a ser a Maternidade Bairro Novo que amamos?
Quando o poder público vê como único caminho de controle de uma pandemia fechar uma maternidade vencedora, isso quer dizer muita coisa. Quer dizer que o elo mais fraco da corrente foi quebrado. E esse elo tem nome. Ele se chama mulher.
Este texto é uma homenagem a todos os profissionais que sempre lutaram pra fazer da Maternidade Bairro Novo uma referência nacional e internacional em parto humanizado. Em nome de todas as mulheres, muito obrigada. Vocês venceram. Nós não vamos desistir.